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A desvalorização do aborto: «O outro bebé nunca existiu!»

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publicado há 5 anos
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Que a perda gestacional é um tema tabu, já todos sabemos.

Que familiares, amigos e conhecidos tentem desvalorizar esse assunto – ora porque não sabem muito bem o que se diz nestas alturas, ora numa tentativa de verdadeiramente ajudar a aliviar o sofrimento dos pais – também se percebe.

O que não consigo aceitar, o que é difícil de digerir, é que sejam os próprios profissionais a desvalorizar de forma tão leviana e banal um assunto tão delicado.

Das duas perdas que sofri antes do Francisco, tive uma ginecologista maravilhosa que mostrou realmente uma grande empatia relativamente à minha dor.

Desta vez, o assunto tem sido abordado de uma forma tão leviana, que eu fico sem palavras perante esta falta de empatia e compreensão para com a dor da mulher.

Ontem, tivemos a ecografia morfológica, o Manuel felizmente está ótimo e a crescer muito bem!

Quanto ao outro gémeo, foi já completamente reabsorvido. No momento, foi um misto de emoções, pois por um lado queria guardá-lo sempre ali, o facto de já não o ver é mais um duro confronto com a realidade, mas por outro lado, eu precisava disso, precisava que o meu corpo fizesse o seu trabalho para que finalmente eu me pudesse despedir deste meu bebé, para finalmente lhe poder dizer adeus, sabendo que o guardarei para sempre no meu coração, no nosso coração.

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Agora, todo o meu útero é luz e vida. Agora todo o meu corpo vive para dar vida ao Manuel.

Mas no meio de tudo, aquilo que me deixou numa enorme tristeza – e revolta – foi o que ouvi do obstetra quando questionei se de facto o outro tinha sido então completamente reabsorvido, porque não o vi, quando na última ecografia estava bem visível. A resposta foi lancinante: «O outro nunca existiu. É importante para as mães saberem disso. O outro nunca passou da fase embrionária, por isso na prática, nunca existiu outro bebé!»

Eu sei que do ponto de vista técnico e médico ele tem razão. O meu “embrião” como ele diz, deixou te ter batimentos cardíacos às 10 semanas e meia. E estávamos tão perto dos três meses.

Mas, do ponto de vista humano, este bebé existiu sim! Existiu na nossa família, existiu no nosso coração. Existiu no pânico da descoberta de uma gravidez gemelar. Existiu no nosso medo de não estarmos à altura, existiu no caminho que fizemos para aceitar este desafio. Existiu no amor que já sentíamos pelos dois. Existiu nos tantos momentos em que nos imaginámos com 4+2. Este bebé existiu na nossa família, sim! E o Manuel sempre saberá que não esteve sozinho, que teve um irmão gémeo que o acompanhou no inicio desta viagem.

Dizer que o outro bebé nunca existiu, é negar tudo isto. Negar as emoções fortes da descoberta, negar o amor, negar a dor enorme de quando o perdemos.

Dizer que nunca passou de um embrião não apaga a sua passagem pela nossa vida, pela nossa família.

É preciso parar de menosprezar a dor na perda gestacional precoce, porque ela é bem real. Se aos olhos da ciência aqueles bebés nunca existiram, a sua passagem neste mundo e as marcas que deixaram nos seus pais, essas são inegáveis.

Alguém respondeu ontem ao desabafo que fiz na minha página de Facebook, dizendo que a violência obstétrica vai muito além do parto, e está muito presente na realidade da perda gestacional. E é verdade. Dizer a uma mulher que perdeu o seu bebé que ele nunca existiu é de uma violência brutal. Dizer a uma mulher que está a fazer um tratamento de fertilidade que aquilo não vai dar em nada, é completamente desumano. Dizer a uma mulher que tem uma perda tardia, que pariu o seu bebé morto, que não o pode ver porque isso seria pior para ela, é inqualificável. Mas acontece. E é preciso mudar isso. E para mudar é preciso falar.

Eu estou serena com a minha dor. O meu bebé partiu, mas deixou connosco uma parte de si.

Estou serena e sei que a sua passagem na nossa vida teve um propósito. Ele existiu.

Eu estou serena e por isso faço questão de “dar a cara” pela perda gestacional. Pelas mulheres que sofrem em silêncio, pelas mulheres que são vítimas desta violenta falta de apoio, empatia e respeito pela sua dor.

Porque precisamos mesmo falar cada vez mais sobre isto.

 

 

 

Texto: Cátia Godinho do projeto A Nossa Mãe é Enfermeira

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