Família

Quando o corpo não tem juízo a adolescência é que paga

Redação
publicado há 6 anos
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O psicólogo clínico Eduardo Sá escreveu um texto no seu site sobre a adolescência nos dias de hoje que não pode mesmo deixar de ler.

 

Não são os filhos que mudam de um dia para outro. Somos nós que, quase de surpresa, acordamos para as suas mudanças e, quando damos conta, eles mudaram da noite para o dia. Passam de filhos que não nos dão ‘um problema’ a pessoas a quem ‘não se lhes pode dizer nada’. E de filhos obedientes a adolescentes rebeldes. De repente, o quarto transforma-se num enclave com autonomia administrativa, bem dentro da nossa casa. A opinião dos amigos cresce à medida em que as ‘moções de censura’ se multiplicam em relação aos ‘sermões dos pais’. E, às vezes, fica no ar uma espécie de ‘é proibido proibir’ que acaba, quase sempre, por uma discussão por ‘coisa nenhuma’, em que, no final, os pais são repreendidos com mais um desabafo da ‘série’ «Também, escusavas de me falar nesse tom» que derrota qualquer argumento como: «arruma o quarto»; «apanha a roupa» ou «desliga o computador» com os quais a mãe ou o pai parecem ter sempre o dedo no gatilho, pronto a ‘disparar’.

A adolescência começa mais cedo e vai até muito mais tarde. Não que ela tenha deixado de ser o conjunto de adaptações psicológicas à puberdade. Mas, mais cedo, porque – aos miúdos de 9 e 10 anos – são permitidos alguns pequenos ‘à-parte’ de ‘primeiras figuras’ entendidos (e condescendidos), pelos pais, como uma ‘adolescência precoce’ (chamam-lhe, hoje em dia, os pré-adolescentes). E mais tarde, porque a adolescência se consolida na autonomia financeira e de espaço próprio que, no ‘fim da linha’, um adolescente precisa de ter, então – bem feitas as contas – a adolescência começa aos 10 e termina aos 30. (Nada de muito entusiasmante para alguns pais que vêem na adolescência dum filho uma ‘alteração do clima’ familiar que veio para ficar).

E, depois, vem o corpo dos adolescentes. E aqui é que tudo se complica. Porque se, dantes, havia os feios, os bonitos e ‘as pessoas normais’, agora o corpo levou (felizmente!) um ‘lifting’ e os adolescentes lutam pelo seu corpo, quase todos os dias. É verdade que, entretanto, a moda democratizou o mundo e se, antigamente, só as princesas tinham direito a ser bonitas (e para que uma adolescente se equiparasse a elas era preciso esperar por outra vida) agora tudo mudou de figura. Usar uns brincos, pintar as unhas ou pôr baton podem muito pouco quando se trata de discutir mais uma ‘versão hard’ dum penteado, um piercing e mais outro, e uma tatuagem que, mal se dá conta, parece alastrar-se a todo o corpo, tornam cada ‘adolescente clean’ numa ‘espécie em vias de extinção’. Não deixa de ser curioso ver como o mundo se insurge contra o corpo da Barbie mas aprova os corpos (cheios de Photoshop) do Instagram, daquelas actrizes e influenciers com que nos identificamos como se fossem a ‘girl next door’. É verdade que precisamos tanto de modelos como a madrasta da Branca de Neve do espelho mágico. Mas, quando toleramos que os modelos (os ‘influenciadores’) dos nossos filhos vivam na ‘escravidão’ dum ginásio, na ‘ditadura’ da maquilhagem, façam dietas perigosas e lhes ‘vendam’ um ‘ideal de beleza’ que os tiraniza mais do que parece, quem precisa de recapitular sobre as vantagens das ‘entidades reguladoras’ somos nós.

O corpo é uma ‘embalagem biodegradável’, é verdade. Mas não é razoável que vivamos as lutas com o corpo dos adolescentes com a mesma passividade com que desprezamos o nosso. Nem todos os adolescente têm de ter um ‘corpinho XS’. Nem todos têm que ter o nariz, o peito ou as ancas com as ‘medidas de referência’. Nem todos conseguem tirar a t-shirt, sempre que chegam à praia, com a desenvoltura de quem vive, exemplarmente, com ele. E nem todos têm que ter com o corpo a ‘imagem de marca’ com que fazem por ser ‘diferentes’ quando, em relação a tudo o resto, parecem demasiado iguais uns aos outros. Aliás, o corpo na adolescência desengonça-se, ‘desformata’, surpreende, erotiza-se e assusta. Tudo quase ao mesmo tempo. Tudo em muito pouco tempo. Como pode um adolescente manter-se familiar para quem o conhece quando o corpo que tem se torna estranho até para ele próprio? Como se pode ser simpático com os outros quando o corpo antipatiza consigo quase todos os dias? Aliás, muitos dos caprichos estranhos dos adolescentes (sobretudo os do verão) tecem-se com a dor de quem não pode fugir dum corpo que foge de si. Por outras palavras, quando o corpo não tem juízo a adolescência é que paga.

Sendo assim, era altura dos pais sentirem a relação dos adolescentes com o corpo doutra forma. Ou reparando que, sempre que se exagera nas fotos para a rede, se pode estar a criar ‘um outro eu’ capaz de os humilhar até a eles. Ou percebendo que quanto maior é a timidez mais eles dão com o corpo ‘nas vistas’. Ou não deixando de reparar que aquilo que parece um ‘capricho de adolescente’ ou um ‘estilo’ esconde, muitas vezes ‘embrulhado num papel colorido’, um sofrimento que os mói. Ou não deixando de se oporem a todos os movimentos de ‘auto-determinação’ do corpo dum filho adolescente que – seja até pela forma como exageram nos doces ou pelo modo como ‘piscam o olho’ à anorexia – precisam de pais activos e interventores, capazes de proibir (sempre que for necessário) e, sobretudo, competentes para lembrar que a beleza se conquista, sim. Mas que ninguém imagine que a beleza começa e acaba na adolescência será, alguma vez, belo para sempre.

 

Texto: Eduardo Sá, psicólogo clínico, no site www.eduardosa.com

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