Saúde

Síndrome de Dravet: «A réstia de esperança foi reduzida a pó e o inferno começou!»

Andreia Costinha de Miranda
publicado há 5 anos
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«No dia 20 de junho dá-se a primeira crise, uma crise tónico-clónica com perda de consciência. Numa manhã de domingo, que deveria ser igual a tantas outras… mas não! Nesse dia, a minha vida parou! Nesse dia percebi que a nossa vida, nunca mais seria igual, apesar de no meu íntimo, a esperança de que tudo não tivesse passado de um susto, ainda se mantivesse. Dias mais tarde, a réstia de esperança foi reduzida a pó e o inferno começou.»

É desta forma que Sandra Morais descreve o início desta caminhada que já conta com 15 anos…

Lara é filha única e foi muito desejada pelos pais, mas a gestação foi tudo menos aquilo que a mãe sonhava. «Das várias ecografias que fiz, a Lara esteve sempre abaixo do percentil. Era uma bebé muito pequena, que não estava a ter o desenvolvimento pretendido para o tempo de gestação. Aos sete meses de gravidez soube que iria ter uma menina, que nasceu de cesariana, de 40 semanas e com 1,680 quilos e 39 centímetros. Na altura foi-me dito que o ACIU( atraso de crescimento intra-uterino) estava relacionado com o cordão umbilical ser tão fino e por isso ela não teve o desenvolvimento que deveria ter tido. Passámos nove dias no hospital, por precaução, e para que o peso dela chegasse aos 2 quilos», conta.

Até que, a bebé «aparentemente sem qualquer problema», aos quatro meses, começa a mostrar fragilidades. Aqui chegamos ao dia 20 de junho que falámos no início do texto. Altura em que «a réstia de esperança foi reduzida a pó e o inferno começou.»

«Odiávamos que nos perguntassem como a Lara estava»

«Crises prolongadas, internamentos, mete medicação, tira medicação, aumenta doses, reduz doses, mas nada resultava, nada fazia parar as crises de 45 minutos, crises que me matavam a cada segundo, crises em que a única coisa que eu pedia era: “Filha, aguenta!”» Foram assim os 14 anos da vida da Lara e também desta mãe.

«Foram anos muito complicados, foram anos de desespero e de uma luta diária constante, em que começamos a contar os dias no calendário e em que pensamos: “Passou mais dia e ela não teve uma crise”. Quando alguém nos perguntava como ela estava e nós dizíamos que estava bem, nesse dia fazia uma crise. Odiávamos que nos perguntassem isso. Chegámos ao ponto de darmos como resposta: “Não nos perguntem isso”!», desabafa.

Depois de consultar vários médicos e sem qualquer diagnóstico, a menina começou a ser seguida no Hospital Pediátrico de Coimbra, em consultas de Neuropediatria, de Genética e mais tarde de Pedopsiquiatria. Isto porque, «para além das crises, o comportamento da Lara foi piorando de ano para ano, com crises violentas de agressividade», colocando em risco a  integridade física dos mais próximos.

O diagnóstico chegou quando Lara tinha 14 anos

Durante estes anos de pesadelo, Sandra só pedia uma coisa: um diagnóstico. «Eu precisava de um nome para a doença dela. Precisava de algo onde agarrar-me. A Dra. Sofia dizia-me que podíamos nunca chegar a um diagnóstico e que mesmo que chegássemos, não havia nada a fazer. Era uma doença genética, não teria cura», avança.

Mas uma mãe não desiste e depois de anos de espera por resultados genéticos que a menina foi fazendo («demora anos porque o hospital precisa de dinheiro para os fazer»), o veredito chegou. «Síndrome de Dravet, mutação no gene SCN1A. Nesse dia, as minhas suspeitas tornaram-se reais. Sim, porque antes do diagnóstico, e não me perguntem como, eu sabia que era Dravet. Foram meses de pesquisa, meses a pesquisar tudo o que era Síndromes que poderiam causar o quadro clínico da minha filha», realça. 

Nesse dia, as lágrimas e a tristeza tomaram conta de Sandra.  «Chorei, chorei muito! A vontade de gritar era imensa, porque sabia que a luta ia ser dura, ia ser desgastante, ia ser uma luta para a vida e que podia ser uma luta perdida. A Dra Sofia, nesse dia agarrou-me num braço e disse-me: ”Sandra, dei-lhe o que me pediu, um nome! E agora, o que quer mais?” Olhei-lhe nos olhos e disse-lhe: “Agora quero um Milagre!”.»

O que é a Síndrome de Dravet?

No site Dravet Portugal, esta síndrome caracteriza-se como uma doença rara que se manifesta no primeiro ano de vida, sendo muitas vezes confundida com convulsões febris ou outras formas de epilepsia.

É uma doença de origem genética, e que apresenta uma mutação no gene SCN1A, o qual tem como função codificar uma proteína constituinte de um canal responsável pelo transporte de sódio através das membranas celulares. A idade do  aparecimento da doença situa-se entre os 4 e os 12 meses de vida, caraterizando-se por convulsões clónicas ou tónico-clónicas generalizadas ou unilaterais de duração prolongada tanto em contexto febril como em ausência de febre. Em idades mais avançadas é frequente o aparecimento de outro tipo de crises (como as mioclonias, ausências atípicas e parciais complexas), o défice cognitivo torna-se mais evidente e aparecem outros sinais neurológicos (como ataxia) e alterações graves de comportamento.

Cada criança pode registar múltiplas convulsões por dia, com duração variável (de um minuto a várias horas, ou até entrar em coma), quer acordada quer durante o sono.

O acompanhamento de um paciente com Síndrome de Dravet é permanente e para toda a vida. Não existe cura, é uma doença especialmente cruel e difícil de gerir por falta de tratamentos eficazes e profissionais especializados. 15 por cento das crianças morre antes de atingir a adolescência.

«Não existe nada mais assustador no mundo como esta realidade»

Nos primeiros anos de vida Lara teve crises de longa duração. Chegava a fazer duas e três crises por dia com duração acima dos 45 minutos. «A maior crise dela durou uma hora», conta Sandra. «Presentemente as crises estão mais controladas. Há meses em que não faz nenhuma, há meses em que faz três ou quatro, com duração de sete a 10 minutos», continua.

Hoje Lara é uma adolescente. Tem 15 anos e «apresenta um défice cognitivo grave com marcadas alterações de comportamento, com baixa tolerância à frustração e com graves surtos de irritabilidade.»

E se Sandra mantém sempre a esperança do tão esperado Milagre, por vezes a vida não facilita. «O mês de janeiro foi passado em internamento, por reação a medicamentos que deveriam controlar um pouco o comportamento. Desde dezembro que perdeu a capacidade de andar, de falar, de comer. Agora encontra-se em fase de recuperação após a retirada da medicação», explica esta mãe.

Uma das descrições desta síndrome é que 15 por cento das crianças morre antes de atingir a adolescência. Como é que uma mãe vive com esta realidade?  «Não se vive, sobrevive-se! Não existe nada mais assustador no mundo como esta realidade. Esta realidade assombra-me a cada segundo. Ninguém imagina o que é viver, cada segundo, cada minuto, com uma espada em cima da cabeça. Sempre há espera que num desses segundos ela caia sobre mim. Um dia disseram-me que eu ainda não tinha feito o luto, não um luto pela perda, mas um luto pela doença. Ainda não o fiz, nem quero fazer, porque no dia em que o faça, estarei a entregar-me à doença e deixarei de lutar. E eu devo à minha filha esta luta e lutarei sempre na procura de uma maior e melhor qualidade de vida para ela. O ano 2018 foi duro para a Família Dravet, partiram várias Estrelinhas. Quando acontece, dá-se um turbilhão de sentimentos indescritível. Sofro pela outra família e por mim, porque sei que um dia posso ser eu “a outra família”», desabafa.

«A felicidade nela traz consequências más»

Sandra descreve a filha como «uma menina muito sociável e muito doce. É feliz à maneira dela. É uma menina que quer toda a atenção do mundo só para ela, que adora puzzles e plasticina, que adora a sua Belina, a égua da hipoterapia, que adora as  terapeutas. Infelizmente, e como não controla as emoções, sempre que está muito feliz, tem uma crise. A felicidade nela traz consequências más», garante.

A menina frequentou o 1.º ciclo, inserida num currículo específico e na passagem para o 2.º ciclo, a mãe fez o pedido ao Ministério da  Educação, para que «a Lara saísse do ensino regular e fosse encaminhada para o CERE ( Centro de Ensino e Recuperação do Entroncamento), onde está atualmente em regime externo.»

A menina faz terapia da fala, terapia ocupacional e mantém a área educacional com uma docente do ensino especial. Já fez hidroterapia e hipoterapia, mas, presentemente, e por uma questão de segurança, não está a fazer.

Sandra não teve de mudar a vida profissional, mas teve de «ajustar horários para conciliar com a entrega e chegada da Lara no transporte do CERE, ao qual não foi colocado qualquer entrave.» «Felizmente, não deixei de trabalhar! Sou funcionária da Câmara Municipal do Entroncamento, trabalho numa escola de primeiro ciclo», diz.

Mas se a nível profissional as coisas foram “fáceis” de moldar, na vertente pessoal, as coisas não correram de feição em determinada altura. «Separei-me do pai da Lara, quando ela tinha seis anos. Algum tempo depois conheci aquele que é o meu companheiro, o Raul. Meu companheiro de vida, de luta, um Paizão para a Lara. Tem sido tudo o que é suposto um pai ser: sofre, luta, acompanha, ama e nunca desiste», conta orgulhosa.

«Dificuldades? O desconhecimento da Síndrome por parte dos profissionais de saúde!»

«O caminho vai ser longo até que se dê o devido valor ao cuidador!» É assim que Sandra aborda a questão dos cuidadores. É uma luta constante por parte destas pessoas que vivem a vida em prol de outros.

É uma luta desigual e, para eles, sem fim à vista. «O cuidador é esquecido, o cuidador se precisar de apoio psicológico, tem que pagar para o ter. O cuidador se tiver que recorrer à licença de assistência a filho com deficiência, recebe 65 por cento do vencimento. O Estatuto do Cuidador Informal será só mais um diploma aprovado e que na prática não fará qualquer diferença, a mim e a milhares de pais e mães que lutam todos os dias por uma vida melhor para os nossos filhos», diz revoltada.

E quais são as maiores dificuldades que Sandra sente em relação a esta síndrome e ao que tem vivido durante os últimos 15 anos? «O desconhecimento da Síndrome por parte dos profissionais de saúde dificulta por vezes, no tratamento de uma simples otite ou constipação. O desconhecimento em relação ao medicamento específico para a síndrome, o Estiripentol, que médicos pediatras e de medicina geral nem nunca ouviram falar. O receio em administrar algum medicamento por não saberem se existe interação com o Estiripentol».

E dá um exemplo: «Há algum tempo, a Lara fez uma crise e bateu de frente com a cara no chão. Cortou um pedaço do lábio por dentro e fui ao hospital. Mostrei a documentação referente à síndrome e o cirurgião pura e simplesmente disse-me que não ia fazer nada, porque não ia arriscar a dar uma anestesia à menina. Ou seja, ainda hoje ela tem aquele pedaço de carne solta no lábio», revela.

«A Lara é a minha âncora»

A conviver com os sintomas da filha há 15 anos, mas com o diagnóstico da Síndrome de Dravet há apenas um, Sandra garante que «o cansaço emocional não tem fim.» «A dor é constante, as noites sem dormir, o medo de fechar os olhos e pensar que ela pode não mais acordar, e que eu não pude fazer nada para a salvar, é algo que não se consegue explicar, só se sente», conta.

«A Lara, devido ao défice cognitivo e de desenvolvimento, não tem perceção que tem crises. Ela não entende se a mãe está triste, se a mãe chora, se a mãe sofre, e isso acaba por me dar algum conforto. Porque ela não sofre, ela não sente, ela é Feliz», assegura. E acrescenta: «A Lara é a minha âncora. É por ela que vou ao fundo, mas também é por ela que venho à tona.»

Financeiramente não é fácil fazer frente às despesas com medicação, com fraldas, com deslocações para o hospital a 100 quilómetros de distância… «o jogo de cintura é enorme», diz.

Por isso mesmo, Sandra deixa alguns conselhos aos cuidadores que possam passar pelo mesmo que ela. «Aos pais em que o diagnóstico seja a Síndrome de Dravet, juntem-se a nós na página Dravet Portugal, e que tenham muita força. A batalha é dura, tem dias muito difíceis e tem dias não tão difíceis. É viver um dia de cada vez, é viver o presente sem pensar no futuro», finaliza.

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