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«Quando se perde um filho…»

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publicado há 5 anos
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Fez seis anos em agosto que perdi um filho. Estava grávida de 17 semanas e a história começou antes de saber que estava grávida. Na altura a Leonor tinha três anos e meio e o Xavier um ano e pouco. Eu tinha 25 anos, era uma miúda. Aquilo que vos vou relatar vem de mim, da minha experiência pessoal, sem juízos de valor.

Um dia senti um caroço firme e pouco móvel perto da orelha, entre a orelha e o maxilar, para ser mais precisa. Achei estranho, esperei uma semana, e não desaparecia. Sentia-me exausta, muito cansada mesmo.

Na semana seguinte descobri que estava grávida, na verdade era um projeto desejado, o nosso terceiro filho.

Consultei algumas pessoas da área da saúde, de forma mais informal, e todas me diziam que “não era nada”. Mas as semanas passavam e continuava. Um pouco maior até.

Às nove semanas de gravidez decidi ir às urgências procurar uma explicação. No hospital, por estar grávida, fui logo para a obstetrícia. O bebé estava óptimo, e suspeitaram que eu teria um quadro inflamatório para poder justificar tal “situação”. Fui encaminhada no mesmo dia para otorrino, que confirmou que estava tudo bem, nem ouvidos, nem garganta, nada. Fizeram-me uma ecografia onde se confirmaram mais nódulos a desenvolverem-se em toda essa zona.

Vim para casa com um diagnóstico de parotidite, sem perceber o que quereria dizer, e o que implicava. Apenas sabia  que daí a seis meses iria repetir a ecografia.

Às 12 semanas fiz as típicas análises. Só três semanas depois chegaram os resultados: toxoplasmose (leia aqui o que é). Eu sabia que não era imune, pelas gravidezes anteriores. Agora estava infetada com este papão. Com alguma ingenuidade respirei fundo e achei que não ia ser nada. Afinal as estatísticas comprovavam que era pouco provável que o bebé apanhasse naquela fase da gravidez. Mas, caso apanhasse, os danos seriam muito grandes.

O meu médico apresentou-me opções. Disse-me que nunca iríamos saber quais as lesões do bebé e se teria alguma, até nascer, ou mesmo até ao primeiro ano. Poderia desmanchar a gravidez ou seguir sem nunca saber o que se passaria.

Só saberíamos se o bebé tinha sido contagiado fazendo uma amniocentese (leia aqui o que é) a partir das 18 semanas, altura em que o bebé começa a fazer xixi para o liquido amniótico. Até lá, iria tomar os medicamentos previstos. O médico, no entanto, aconselhou a esperarmos pela amniocentese e aí decidir o que fazer.

Mas eu já tinha decidido: aquele bebé era meu filho, eu já o sentia, era meu. Não poderia escolher abortar, nunca conseguiria viver com isso. Eu escolhi a vida, fosse ela como fosse, viesse como viesse.

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Ele congratulou-nos como se fossemos espetaculares: «Vocês são fantásticos, parabéns!» [não somos, mas somos pais, e sei as marcas que deixam um aborto] e principalmente na inexistência de certezas, e da possibilidade de existir saúde na vida daquela criança.

Não senti orgulho nenhum na minha opção, na verdade, senti que estava a ser pouco corajosa ao escolher a vida: eu não saberia viver comigo tendo tomado essa decisão de livre vontade. Os meus valores morais nunca me deixariam escolher abortar mas na hora H eu sentia os meus impulsos humanos. E sentia o meu filho, vivo dentro de mim.

Não chegamos às 18 semanas. Uns dias antes da consulta deixei de sentir o bebé, a barriga começou a ficar mais pequena e eu já sabia o que me iam dizer: Não havia sinal de vida.

Eu estava tranquila, eu sabia. Já tinha dito ao Miguel no dia em que pressenti todas as mudanças. A minha mãe quis vir connosco à consulta, eu não tive coragem de lhe contar as minhas suspeitas, nem ao médico. Fechei os olhos e deixei que aqueles minutos e tentativas intermináveis à procura do coração do bebé terminassem ou me trouxessem um presente. Foi um choque enorme para todos… Quando confirmámos com a ecografia, vi coisas que nunca mais me vou esquecer. Um bebé que estava óptimo há um mês, que se mexia, estava desfeito, colado a uma das paredes do útero, quase já sem líquido.

Esperamos uma semana e entrei em trabalho de parto espontâneo. Fui para o hospital, levei morfina para suportar as dores, e até as da alma. Na televisão passava a série “maternidade” e eu de tão drogada vi tudo, sem dramas.

Só nasceu à meia-noite, os meus pais já se tinham ido embora e o Miguel tinha adormecido no cadeirão. Senti imensa vontade de fazer força, senti que ele ia sair, chamei a enfermeira que apenas teve tempo de segurar. Foi o único parto que senti tudo, teria sido o parto mais emocionante da minha vida.

A enfermeira perguntou se eu queria ver e eu aflita só me lembrava da ecografia e de como deveria estar, e disse que não. Levaram-no e até hoje só tenho na minha cabeça a imagem de uma bolsa de sangue. Levaram o meu bebé e eu não sei onde ele está.

Passado um tempo arrependi-me. Queria ter podido enterrar, ter feito um luto mais compreendido. Mas isso não era possível.

Nos dias seguintes, como estava de férias, voltei à praia. Não me quis esconder e sofrer sozinha, quis o abraço de todos os que estavam à minha volta, as palavras e os beijinhos que foram todos reconfortantes.

Alguns de vocês chegaram aqui há pouco tempo e não conheciam esta nossa história, e tenho algumas pessoas próximas de mim que já passaram ou estão a passar por um momento destes, que senti que precisava de partilhar com todos: tudo passa, nada se esquece.

Guardo todos os minutos desse dia e dos dias seguintes.

Guardo o silêncio com que sobrevivi. Mas também guardo os gestos, os pequenos gestos de tantas pessoas.

Durante os meses que se seguiram custava-me muito ver grávidas, bebés pequeninos. Até tive que sair da Igreja num baptizado onde estava a fotografar porque de repente vi chegar ao pé de mim três carrinhos com bebés à volta dos dois meses. Saí, chorei e voltei.

Durante esse tempo não quis engravidar, por nada.

Um dia fez-se luz, e só queria estar grávida de novo. Foi o único bebé que tive de esperar mais tempo, não conseguia engravidar à primeira como estava habituada. Levaram quatro ou cinco meses. E chegou o nosso Sebastião.

A maior dificuldade que senti foi a de falar. Sentia que os olhos das pessoas me julgavam quando precisava de falar, ou dizia alguma coisa sobre o assunto: «Ainda? Já passaram meses, já devia ter passado.» Era o que eu via nos olhos dos outros. Não relativizem nunca a dor de uma mãe e de um pai. Deem espaço para falar ou não falar. Acolham.

É difícil ser amigo, irmã ou irmão, pai ou mãe nestas situações, e muito difícil estar perto. «O tempo cura, já tens outros filhos, não és a única.» Palavras sem intuito de magoar mas que não ajudam.

Do coração: estar perto e  ser amigo é difícil nestas situações, mas a vida tem coisas boas e más, a dor faz parte dos nossos dias.

Que a sociedade, nós todos, não gostamos de falar das coisas que doem, faz parte da sobrevivência. Mas a mim o que mais me ajudou foi falar e escrever, na altura, no blogue. Houve alguns posts que deixei de escrever com medo de parecer ridícula, face a tantos outros problemas mais graves de outras pessoas.

No fundo o que eu queria mesmo dizer é que não palavras para este sofrimento e para a solidão com que se atravessa estes momentos.

Mas a vida dá a volta e traz-nos coisas boas, que não apagam, não nos deixam esquecer, mas apaziguam.  A Vida é boa.

Texto: Catarina Macedo Ferreira, autora do blogue Ties

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