Saúde

O Mundo do Gonçalinho: Conheça o menino com mutação genética rara, o terceiro caso a nível mundial

Andreia Costinha de Miranda
publicado há 5 anos
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Gonçalo é filho único e sempre foi um menino muito desejado pelos pais.

A gravidez foi passada de forma normal e nunca houve motivo para alarme. «Foi uma gravidez super vigiada (todos os meses via a minha obstetra). No geral foi uma gravidez normal, com alguns percalços (dores, pedras nos rins, idas à urgência) pelo meio, mas nada com o Gonçalo. Todas as ecos e exames estavam normais», conta-nos Tânia Vargas, mãe do pequenito, de 19 meses.

Mas durante o primeiro ano de Gonçalo, os pais percebiam que algo de estranho se passava com o filho. O menino nasceu um bebé muito “molinho” e pouco reativo, e teve uma série de problemas que fizeram com que ficasse internado na neonatologia. Desde então, os hospitais passaram a ser visita obrigatória.

O diagnóstico final chegou cinco dias antes do menino fazer um ano. «Foi aí que soubemos da mutação. Para ser sincera, foi um alívio ter um diagnóstico. Conhecia casos de famílias que levavam anos até ter um diagnóstico (muitas nem chegam a ter), e nós já sabíamos que se passava algo com o Gonçalo, por isso queríamos dar um nome ao que ele tinha. Foi um misto de emoções: o alívio como disse, a vontade de saber mais, e a surpresa sobre a questão da raridade da mutação. Quando recebi a chamada, não se sabia de mais nenhum caso da mutação em específico, só depois em consulta é que soubemos que existiriam mais dois casos. Da sobreposição dos dois síndromes em si, de acordo com o ORPHANET, existe uma prevalência de <1 / 1 000 000», explica Tânia.

Gonçalo a brincar
Gonçalo a brincar
A mutação diagnosticada ao Gonçalo é o terceiro caso a nível mundial de que há registo

A mutação é num gene, ligado ao colagénio de tipo I, que está associada a duas síndromes: Osteogénese Imperfeita e Síndrome de Ehlers-Danlos. Ambos os síndromes não têm cura e causam vários tipos de problemas ao Gonçalo.

«Provocam-lhe fraturas (fragilidade óssea), hipotonia (falta de tónus muscular) e hipermobilidade (as articulações, ligamentos e etc, deslocam muito mais facilmente e esticam para lá do que deveriam), entre muitos outros sintomas. Para se ter um pouco a noção sobre a fragilidade da situação, não é preciso cair ou bater em algo lado para fraturar. A última fratura do Gonçalinho aconteceu porque ele se desequilibrou da posição de sentado, sem bater em nenhum lado», conta a mãe do menino.

«Basicamente tudo o que tem colagénio, desde órgãos, a músculos, ossos, ligamentos, etc, não funciona normalmente. Por exemplo, colapso da cervical, descoloração das escleróticas, deformidades ósseas, problemas cardíacos, rutura de vasos sanguíneos, problemas de audição, problemas de visão, entre muitos outros, estão dentro dos sintomas possíveis. Alguns já se começam a mostrar no Gonçalinho. Os síndromes também causam dores crónicas, tanto ósseas como musculares, as quais, infelizmente, ele já tem, assim como fadiga constante», continua.

O atraso no desenvolvimento do Gonçalo

Tudo isto provoca um atraso no desenvolvimento motor e noutras competências, tais como a linguagem. «Neste momento, o Gonçalo, com 19 meses (em fevereiro de 2019), não se segura de pé sozinho, não anda e não fala. No entanto, o desenvolvimento cognitivo é normal, o que lhe causa bastante frustração, pois quer fazer tudo como os outros meninos e não consegue. Cada vez que faz uma lesão ou uma fractura retrocede no desenvolvimento. Recentemente magoou-se num pé, deixando de fazer carga e perdeu massa muscular. Isto acabou por fazer com que perdesse algumas competências que já tinha», explica Tânia.

E que cuidados especiais se têm de ter com o pequeno Gonçalo? «Os cuidados acabam por ser vários. Não pode ser deixado sozinho, temos de estar literalmente sempre ao lado ou atrás dele para não fazer fratura. Comemos frequentemente à vez, e dormimos várias vezes por turnos, caso ele esteja mais agitado ou doente, de modo a vigiar engasgamentos (que acontecem por ele ser hipotónico) ou fracturas/lesões. Não lhe podemos contrariar o movimento, porque um puxão mal dado pode significar fratura. Evitamos elevadores, multidões ou essencialmente ambientes em que não possamos monitorizar as interações com o Gonçalo».

Gonçalo a brincar com o pai... e com uma das fraturas no pé e perna
Gonçalo a brincar com o pai… e com uma das fraturas no pé e perna
Anafilaxias, apneias do sono e dificuldades de processamento sensorial

Para além da mutação e das consequências (síndromes), o Gonçalo tem alergias severas (anafilaxias), faz apneias do sono e tem dificuldades de processamento sensorial. Como será lidar com todos estes problemas de saúde e quais as principais dificuldades no lidar e no tratamento destas patologias?

Tânia Vargas explica. «Lidar com estas questões está tão enraizado em nós que nem paramos para pensar se é ou não difícil e as adaptações que temos de fazer no dia-a-dia. A parte das apneias, é, provavelmente a mais “fácil”. Tentamos introduzir a máquina de ventilação, mas infelizmente o Gonçalo tem pânico e nunca chegou a usar efetivamente. Acabamos por desistir e vamos controlando as apneias através da posição de dormir e medicação. A questão sensorial acaba por ser um pouco mais complicada, mas ainda assim, com as devidas adaptações, conseguimos que não afetem muito o Gonçalo».

Exemplo disso são «as novas texturas que têm de ser introduzidas muito gradualmente – primeiro pela visão, depois pelo toque e só depois pelo paladar. Muitas vezes ele não consegue fazer a transição do toque para o paladar, por isso é preciso trabalhar com o Gonçalinho uma, duas, 50 vezes até que ele consiga tolerar melhor. Por vezes nem o toque ele aceita… Para além disso, também facilmente entra numa espécie de sobrecarga sensorial com muitos sons e luzes – já demos por nós a precisar de o acalmar porque era demasiado para ele. Certas roupas, certos barulhos, certas comidas… é saber evitar e depois introduzir com calma. A terapia ocupacional e a terapia da fala são essenciais aqui.»

Alergias: A questão mais complicada

Relativamente às alergias, segundo a mãe de Gonçalo, acaba por ser «o mais complicado». «Ele faz reação alérgica por toque e inalação, para além de ingerir, que era algo que eu antes nem sabia que era possível. A última foi com a inalação de ovo, estava no mesmo espaço e foi o suficiente. Isto acaba por nos fazer ter muitos cuidados. Limpamos sempre mesas, cadeiras e tudo o que o Gonçalo possa tocar quando vamos a um restaurante ou sítio com comida. Temos o cuidado de ficar longe da cozinha. A introdução de novos alimentos é lenta e regrada. Só pode comer certas e determinadas coisas. Temos de estar sempre em cima – já perdi a conta às vezes que lhe ofereceram alimentos que o podem, efetivamente, matar. A medicação de SOS (anti-histaminicos, epipen, corticoides) está sempre connosco», garante.

Apesar de todos estes problemas, os pais, residentes em Braga, fazem com que o dia-a-dia do menino seja o mais normal possível. Grande parte do tempo dele é passado no hospital, em terapias, consultas, exames e afins. Como tal «sobra-lhe menos tempo do que eu gostaria para ser criança», salienta Tânia.

«Acabo por controlar e monitorizar muito mais do que gostaria. “Sonhei” que seria uma mãe descontraída, que deixaria o filho sujar-se, correr, cair, aprender com os erros. Infelizmente os problemas sensoriais fazem com que se deteste sujar (em certos casos fica mesmo desesperado para ser limpo rapidamente), não o posso deixar cair, ou tenho de o fazer de forma controlada pois pode fazer fratura/lesão, não o posso deixar aprender com todos os erros pois alguns deles significam consequências muito negativas para o Gonçalinho. Temos de viver a vida um dia de cada vez, ao ritmo dele», anuncia esta mãe.

Gonçalo com a mãe e com o pai
Gonçalo com a mãe e com o pai
A mudança na vida dos cuidadores

Tânia é natural de Serpa, no Alentejo. Conheceu o marido em Coimbra, quando eram estudantes. Vivem há três anos em Braga e a vida que tinham projetado mudou drasticamente quando Gonçalo nasceu. Antes do menino nascer, esta mulher trabalhava em Marketing e Comunicação, mas teve de colocar a carreira de lado.

«Fiquei de baixa por assistência a filho com deficiência. Nós não temos família perto de nós, por isso não temos uma rede muito grande de apoio próximo geograficamente. A carga de terapias, consultas e afins é muito grande e exige uma grande disponibilidade da nossa parte», explica ao site Crescer.

Aqui, entra a questão dos cuidadores, que segundo Tânia, ainda «existem imensas coisas a fazer.»

«Por exemplo, a baixa por assistência a filho com deficiência só é extensível até quatro anos. É paga a 65 por cento do salário. Ora, ao final de quatro anos ou se vai trabalhar ou se fica sem rendimento. Mesmo durante estes quatro anos, 65 por cento do salário é um grande rombo no orçamento familiar, principalmente porque há deslocações, terapias, medicação e todo um outro conjunto de coisas a pagar e comprar a uma criança com necessidades especiais. Ir trabalhar ao final desses quatro anos é muitas vezes impossível. Muitas crianças continuam a necessitar de apoio permanente. No caso do Gonçalo, cada vez que faz uma fratura são três/quatro semanas em casa com gesso, mais uma sem gesso em recuperação. É preciso muito jogo de cintura. É necessário um apoio financeiro permanente ao cuidador, ou pelo menos legislação suficientemente flexível para que este possa cuidar do dependente. Tenho a sorte de ter tido uma empresa super compreensiva neste aspeto e que me tem dado todo o apoio e que realmente se preocupa com os seus trabalhadores. Depois há ainda o próprio peso mental. Um cuidador não tem férias, não tem dias de doença, tem de estar sempre bem. Tem de se saber mexer dentro de um sistema de saúde e segurança social muitas vezes confuso, sem apoio permanente. Não há um apoio psicológico propriamente dito», salienta.

Os gastos com as terapias e a alimentação

Com os problemas que Gonçalo tem, o nível de gastos em terapias e em alimentação acabam por serem acrescidos. «O Gonçalo tem a sobreposição das alergias com os problemas sensoriais. Só pode comer coisas muito específicas e dentro dessas coisas muito específicas só tolera uma pequena variedade. Por exemplo, só come um tipo de bolachas, porque o resto rejeita pela textura, não consegue mesmo comer. Cada pacote dessas bolachas custa entre 4 a 5 euros, e ele gasta bastantes por semana. A papa também só consegue tolerar uma em específico, que é feita com água ou com leite adaptado à base de arroz, que tentamos que ele também vá bebendo. Felizmente ainda é amamentado (faço evicção na minha dieta dos alérgenos dele), o que reduz os gastos de leite especial. Depois temos a medicação, tanto para as alergias (constante ou em SOS) como para os problemas resultantes das síndromes. Eu diria que entre alimentação especial, suplementos alimentares, medicação e terapias (nós pagamos a fisioterapia – metade é feita no privado – e a natação) gastamos todos os meses à volta de 400-500 euros em média. Há meses que é menos e meses que é mais», conta-nos.

Gonçalo a brincar
Gonçalo a brincar
«Não pensei propriamente no “porquê a mim”, mas pensei muitas vezes (e ainda penso) no “porquê a ele”»

Uma mãe e um pai nunca imaginam que vão passar por situações difíceis com os filhos. E pensam muitas vezes no famoso cliché «porquê a mim»… Mas com Tânia não foi assim.

«O Gonçalo demonstrou ter problemas de saúde menos de 24 horas depois de nascer, por isso quando tivemos o diagnóstico (aos 11 meses) já estávamos mais do que habituados a encarar o futuro com reservas. Durante os dois/três primeiros meses da vida do Gonçalo andei em negação que ele teria alguma coisa. Naquela primeira semana acho que não passei uma hora sem chorar. Sentia-me fragilizada, perdida – não fazia ideia do porquê de tantos problemas – via o meu filho à distância de uma parede de vidro (ele estava na incubadora). Quando voltámos para casa, a minha perceção (ou talvez esperança inocente) é que já estava tudo bem, já tinha passado o pior, embora ele tivesse hipotonia severa e fosse um bebé “floppy”. Começaram os exames, as consultas e com um mês de idade iniciou a fisioterapia. Lembro-me que a médica fisiatra nos passou 15 sessões e eu pensei “boa, 15 sessões e acabou o pesadelo”. Longe disso. Ainda hoje faz fisioterapia».

«Essa minha perceção mudou quando uma das médicas que segue o Gonçalo me disse que “tínhamos de chamar as coisas pelos nomes”. O Gonçalo tinha uma deficiência motora, independentemente do motivo. Não foi fácil interiorizar que seria para a vida toda. Ainda hoje em dia, eu e o meu marido a conversar sobre planos futuros damos por nós muitas vezes a dizer “…mas o Gonçalo não pode”. É aí que pegamos nos planos e adaptamos. Não pensei propriamente no “porquê a mim”, mas pensei muitas vezes (e ainda penso) no “porquê a ele”. Quando via outros bebés da mesma idade a fazer coisas que o Gonçalinho não fazia partia-me o coração. Agora já não. Aos poucos, e à maneira dele, ele consegue tudo. Ele falhou todos os marcos de desenvolvimento motor típico. Segurou a cabeça tarde, aprendeu a sentar tarde, só gatinhou quando muitos dos pares já andavam… Mas conseguiu e é isso, no final de contas, que interessa. Não existe propriamente um sítio onde se vá buscar força… Estamos constantemente em modo de sobrevivência, em piloto automático. Não nos permitimos descansar e baixar os braços, para a frente é que é caminho, como se costuma dizer. Não paramos para pensar nos “ses” e nos “porquês”», salienta.

A página do Facebook que Tânia Vargas criou
A página do Facebook que Tânia Vargas criou
«A informação é o caminho para a inclusão»

Na página que criou no Facebook, que se chama O Mundo do Gonçalinho, Tânia garante que o feedback dos leitores tem sido «muito positivo». «Criei a página porque acumulei muita informação sobre doenças raras, sobre a hipotonia (que sempre foi o grande sintoma que o Gonçalo demonstrou logo desde o nascimento), sobre os síndromes, sobre apoios, estudos, deficiências… Bem, de tudo um pouco. Criei também em forma de desabafo, porque apercebi-me rapidamente que embora seja algo que se vai discutindo, na realidade a maior parte das pessoas desconhece como é o dia-a-dia de um cuidador e de uma criança com necessidades especiais. Recebo muitas mensagens de pessoas a partilhar a sua própria história, a dar força, a agradecer por divulgar a situação pois sentem que estão a aprender. Tenho de salvaguardar aqui que eu não sou médica, tento ajudar o máximo que posso dentro da minha experiência, mas os profissionais de saúde devem ser sempre a nossa referência.»

Nessa mesma página, a mãe de Gonçalo deixa a mensagem de que «a informação é o caminho para a inclusão». E esta é uma realidade que Tânia quer que seja cada vez mais comum. «Já perdi a conta às pessoas que vieram ter comigo e me disseram que não tinham noção das dificuldades que as crianças de desenvolvimento atípico passam, que não tinham noção daquela ou da outra doença, ou simplesmente que não faziam ideia da quantidade de terapias e seguimento que é necessário e do trabalho que isso envolve. Há muito a perceção que estas coisas só acontecem aos outros, o que não é verdade. Na nossa sociedade a deficiência ainda é um grande tabu, ainda se olha para as crianças com necessidades especiais como “coitadinhos”. Isso tem de acabar. Por isso, tenho esperança que um dia todos conheçam a realidade das doenças raras, das deficiências, dos próprios cuidadores e que as necessidades especiais passem única e exclusivamente a ser necessidades diferentes», assegura.

Por agora, Tânia vai continuar a apostar na página O Mundo do Gonçalinho e garante que vai continuar a surgir «divulgação sobre doenças raras, informação sobre deficiências, apoio a outros pais.» «Criei também, há algum tempo, um grupo, que é administrado por mim e moderado por mais duas mães de crianças com necessidades especiais (ambas com páginas: A Família Neurodiversa e T2 Para 4), que é um espaço seguro de partilha para cuidadores. Não esperava que a página ganhasse a visibilidade que tem, mas fico contente que tenha acontecido, porque está (espero eu!) a desmistificar o dia-a-dia e as dificuldades tanto das crianças como dos cuidadores», explica.

E dessa forma, Tânia continua a viver um dia de cada vez, sempre com o amor e a ternura de Gonçalo, que «tem o sorriso mais lindo do mundo.»

«É um bebé muito bem-disposto, muito simpático. Costumo dizer que ele é uma “maria vai com todas”, é muito sociável. Raramente chora e está mal-disposto, e, como tal, se uma das duas coisas acontece já sabemos que existe qualquer coisa por trás. O Gonçalo é o bebé que se ri no meio de colocar gesso ou tirar sangue. Tem uma personalidade fantástica, é super inteligente e observador. Tem um sorriso muito aberto, muito generoso, de quem já passou por muito, mas ama a vida», finaliza.

 

Fotos: Gentilmente cedidas por Tânia Vargas

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