Bebés/Crianças

Maus tratos infantis: A realidade crua, numa sociedade nua!

Redação
publicado há 6 anos
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A sociedade está nua. Ou quase. Tem vindo a despir-se de afetos e valores ao longo das últimas décadas.

Vivemos atualmente perante uma sociedade que valoriza cada vez mais o ter e o fazer, em detrimento do ser e do estar. Ou seja, a pessoa não é definida pelo que é, e muito menos pela forma de estar na sua relação com o outro. A pessoa é antes definida pelo que tem, num jogo de ambição e consumo que nunca acaba.

Isto tem consequências em várias frentes, uma delas, os maus tratos infantis. É curioso que este seja ainda um tema tabu, numa sociedade em que é uma realidade cada vez mais presente na vida de cada vez mais crianças. Se tivermos em conta as estatísticas mundiais da Organização Mundial de Saúde (OMS) para 2010 e as compararmos com as estatísticas da mesma organização para 2016, vemos um aumento de cerca de dez mil casos por ano de crianças com menos de 15 anos que são mortas vítimas de maus tratos infantis. Passaram assim de 31 mil casos por ano em 2010, a 41 mil casos anuais em 2016. Cerca de 112 crianças morrem a cada dia pelas mãos dos seus agressores.

Estes dados apenas indicam a quantidade de crianças a quem a vida foi arrancada, tendo em conta os casos declarados. Não contabilizam os casos em que as mortes são registadas com outros motivos, ainda que suspeitos, o que faria, de acordo com os especialistas, disparar estes números.

Depois, temos ainda as crianças cuja vida é hipotecada, não chegando a ser roubada. E estes são muitos. Maus tratos físicos, psicológicos, abusos sexuais, negligências. Milhares (senão milhões) de crianças são sujeitas a isso diariamente, sem que ninguém se aperceba, ou queira aperceber-se. E não falamos apenas dos países de terceiro mundo onde as crianças são escravizadas tanto para mão de obra barata como enquanto objetos sexuais. Falamos a nível mundial.

Se voltarmos à nossa sociedade, temos, além dos abusos sexuais que são um flagelo preocupante, os maus tratos físicos e psicológicos a crianças. E aqui temos várias ramificações, sendo as mais importantes a exposição à violência doméstica, o crescimento numa família que sempre teve o hábito de «educar» as crianças baseando-se na violência, e, o grande cancro da nossa sociedade, os maus tratos quando, de uma forma ou de outra, a criança não corresponde às expectativas da família. Humilhações frequentes, privações importantes, maus tratos físicos constantes.

Nos nossos dias, as crianças têm cada vez menos espaço para serem crianças, é-lhes exigido muitas vezes que se comportem como adultos em ponto pequeno, que FAÇAM muitas coisas, e que o façam bem, para que um dia possam vir a TER muitas coisas. E quando de alguma forma não conseguem corresponder a essas exigências, então sofrem as consequências duras de uma sociedade amargurada.

Os maus tratos infantis não são específicos de uma certa cultura ou classe social. Tão pouco estão restringidos a crianças de um determinado sexo ou idade. Qualquer criança, de qualquer sexo, idade, etnia, classe social, em qualquer parte do mundo pode ser vítima de maus tratos.

Muito se fala em dar destaque à prevenção, mas enquanto profissional o que vi ao longo de quase dez anos – mais uma vez – foi que este é um tema sobre o qual mais vale não falar. Por medo, porque por vezes é duro trabalhar com isto – se é! – porque não se sabe muito bem como se há-de agir, como se há de abordar a família, a criança e a situação, e muitas vezes por mero desconhecimento, deixamos sinais escapar-nos por entre os dedos, e pedidos de ajuda dissimulados ficarem sem resposta.

E enquanto profissional, isso é o que mais me custa. Por isso, ao longo da minha carreira hospitalar, sempre desenvolvi projetos que visaram sensibilizar e apoiar os profissionais das instituições relativamente a esta temática.

Não é fácil enfrentar esta realidade. Não é fácil sentir empatia por quem maltrata uma criança. Não é fácil permanecer inteiro perante situações às vezes desumanas e hediondas.

É muito difícil olhar os olhos de uma criança mal tratada e perceber medo, vergonha, culpa. E é difícil olhar nos olhos dos seus próprios filhos quando se chega a casa, e se questiona o porquê de muitas crianças não terem as bases a que têm direito: amor, carinho, respeito.

No início da minha carreira, uma colega por quem ainda hoje tenho muita estima disse-me, face ao primeiro caso verdadeiramente duro que assisti, depois de eu perguntar o que podíamos fazer mais: «Vais para casa, abraças o teu filho com muita força, e agradeces por estares presente na vida dele.»

Perdi a conta de quantas vezes agradeci pelos meus filhos. De quantas vezes abracei essas crianças através dos abraços dos meus filhos. De quantas vezes saí de reuniões de olhos vermelhos e com dores de cabeça por ter de engolir as minhas emoções de mãe. Mas ali eu não era mãe, era profissional, e como tal, teria de tentar fazer a diferença na vida daquelas crianças, daquelas famílias. Algumas vezes consegui, outras apenas fiz de ponte, outras perdi-lhes o rasto.

Este é um assunto que precisa ser falado, precisa deixar de ser tabu, precisa deixar de estar nas sombras onde ninguém o veja, no fundo das águas que se tenta não agitar, por ser um assunto que incomoda.

É preciso falar sobre isto. Cada vez mais.

 

 

Texto: Cátia Godinho do projeto A Nossa Mãe é Enfermeira
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